Tudo começou há mais de 20 anos, talvez tenha começado antes, mas os meus pais não souberam identificar os sinais. Frequentava a escola primária, tinha talvez os meus 7/8 anos e faltava bastante à escola por estar doente. A professora dizia-me muitas vezes que eu tinha a pele amarela, mas eu nunca dei importância. Como uma criança normal, corria, pulava e brincava sem nenhum problema.
Chegou a altura de deixar a primária e seguir para o ciclo, e aí começaram os verdadeiros e dolorosos problemas. Pouco depois de ir para o ciclo, comecei a sentir dores fortes nos tornozelos, dores ao fundo das costas, falta de apetite, a pele amarela, muito cansaço e só de andar era um martírio muito grande para mim. Tinha-me transformado numa criança completamente diferente. Tinha dificuldades em tudo. Tinha dificuldade em andar, correr, comer, concentração, tudo! A minha mãe resolveu então levar-me à médica de família e fiz análises a tudo o que possam imaginar. No fim, o diagnóstico foi coluna torta e pés chatos. A médica aconselhou a minha mãe a procurar um ortopedista e a inscrever-me na natação. E assim foi, frequentei a natação, fui a um ortopedista e até cheguei a usar botas ortopédicas, e o que me custava andar com aquilo. Era horrível. Se eu já tinha dificuldade em andar, com as botas era ainda pior, porque me magoavam imenso os pés. Andei nesta situação quase um ano.
No verão de 1999 fui de férias com a minha família para o Norte do país. Será um episódio que nunca esquecerei, porque se não tivesse acontecido isto na minha vida, talvez não estivesse aqui agora a dar o meu testemunho. Estávamos todos sentados à mesa para almoçar, eu estava sentada entre o meu pai e a minha madrinha, com a mão pousada na mesa. A minha madrinha reparou nas pontas dos meus dedos e disse aos meus pais para me levarem rapidamente ao médico (tenho as pontas dos dedos deformadas por causa do hiperparatiroidismo, problema só viria a ser descoberto em 2015). Voltámos de férias e os meus pais levaram-me a um pediatra particular. Fui a uma consulta numa quarta-feira à noite e no dia seguinte já estava às 8 horas da manhã no Hospital D. Estefânia para fazer exames. Nesse dia já não voltei para casa. Foi preciso um mês para descobrirem o que eu tinha. Descobriram então que os meus dois rins não tinham crescido e não funcionavam, equiparando-se a uma folha de papel vegetal.
A opção foi de imediato a hemodiálise e, consequentemente, a entrada para a fila de espera para o transplante renal. Comecei a fazer hemodiálise a 22 de fevereiro de 2000, pouco antes de fazer 12 anos de idade. Três vezes por semana fazia 3 horas de tratamento e depois, supostamente, deveria ir para a escola. Mas não, a maior parte dos dias não conseguia. Saía de lá extremamente cansada, ia para casa e conseguia repor as minhas fracas energias se dormisse uma tarde inteira. As restrições na alimentação e nos líquidos, era outro martírio. Limitar-me a um pão com manteiga e a um leite especial com um sabor intragável, era terrível. Claro que fiz asneiras, mas sabiam tão bem. Lembro-me do único Natal que passei com restrição alimentar, toda a gente a comer doces, a beber e eu sentada com o meu prato de batatas e legumes cozidos à mesa. Lembro-me dos meus colegas na escola e dos meus primos em casa correrem, andarem de bicicleta, pularem e eu sem conseguir acompanhá-los. Até subir e descer do autocarro me custava. Cheguei a perder muitas vezes os transportes porque não conseguia chegar a tempo. Tinha de pedir ajuda aos amigos dos meus irmãos para me carregarem a mala da escola. A hemodiálise nem sempre correu bem, vomitava muitas vezes, e numa situação limite em que me senti bastante mal, tentei arrancar as agulhas do meu braço. Foi um ano bastante difícil na minha vida, mas graças a Deus tive uns bons colegas, profissionais de saúde e a minha família comigo.
No dia 22 de fevereiro de 2001 por volta da 1 hora da manhã, tinha eu acabado de adormecer, oiço muito ao longe o telefone de casa tocar. E oiço a minha mãe dizer, “O quê? Tem um rim para ela??”. Não me levantei, continuei a dormir e pensei mesmo que estava a sonhar, até a minha mãe me vir acordar. Dei um salto tão grande da cama e foi um misto de sensações. Como criança que era, fiquei com medo, fiquei feliz, fiquei triste, fiquei apreensiva… Bem, nas horas que antecederam o transplante só chorava, eram os enfermeiros, os médicos, os auxiliares, todos a tentarem acalmar-me. Entrei no bloco operatório às 14 horas e saí 6 horas depois. A primeira coisa que pedi foi água. Claro que não me deram logo, mas lembro-me que assim que pude beber água, soube-me tão mal, que eu pensei na minha inocência “Fiz o transplante, e agora que posso beber água à vontade, vai saber-me mal”. A cirurgia correu bem, sem complicações e ao fim de 11 dias tive alta. Pude finalmente viver a minha vida, correr, pular, brincar, andar de bicicleta, ir de férias, não ter restrições alimentares, pude fazer uma vida “normal”. Dos 11 anos que estive transplantada tive algumas “complicações”, mas situações que se resolveram sem grandes problemas. Tive 11 anos de uma vida que eu considero “fácil” e feliz. Pude ser uma jovem adolescente feliz e, acima de tudo, poder lutar pela minha vida. O tormento tinha acabado para mim e para a minha família.
Em 2012, tinha eu a minha vida estabilizada, tinha um trabalho, tinha a minha casa e tinha saúde. Mal eu sabia o que vinha por aí. Tudo começou com uma simples dor de dentes. Medicação mais medicação, antibióticos e uma grande infeção na boca. Tratei e fiquei bem, mas supostamente o meu rim não aguentou. Quando fui internada, e depois de ter feito uma biopsia ao rim transplantado, recebi uma das piores notícias. Não havia nada que os médicos pudessem fazer pelo meu rim, seria uma questão de dias ou semanas e voltaria à hemodiálise. Lembro-me de a médica vir até mim, sentar-se na minha cama e dar-me a notícia. Depois disso fiz um enorme esforço para não chorar diante dela. Dirigi-me à casa de banho e chorei com toda a força que consegui por uns minutos. Recompus-me, olhei no espelho, enxuguei as lágrimas e disse para mim mesma: “Vamos lá, se é para começar tudo de novo, que assim seja”. Saí da casa de banho e a minha luta começou naquele dia até aos dias de hoje. Desta vez optei pela diálise peritoneal e foi das melhores escolhas que fiz na minha vida.
Nesse mesmo ano perdi o meu trabalho e, consequentemente, a minha casa. Foi uma questão de meses até o meu estado de saúde se agravar, assim como a minha autoestima, o meu psicológico… São tudo consequências de estarmos doentes, mas vou vivendo um dia de cada vez. Hoje é hoje, amanhã logo se vê.
Em 2016, posso dizer que foi o pior ano da minha vida. Tudo começou em inícios de março com uma pancreatite, em que estive 5 dias sem me alimentar até o meu pâncreas se restabelecer. Em maio fui chamada para fazer uma pequena cirurgia às paratiroides. A cirurgia correu bem, mas o pior foi o pós-operatório. Posso dizer que não me lembro dos primeiros três dias após a operação e a minha consciência só voltou no dia 13 de maio (eu sei que todos que lerem esta data vão-se lembrar de Nossa Senhora de Fátima) e a partir daí comecei a melhorar. Depois da cirurgia voltei ao hospital mais três vezes, e este internamento é o que mais dói recordar. Fui internada talvez em junho, com uma peritonite e com líquido à volta do coração e os valores do cálcio e do potássio baixos. Não tenho muitas recordações deste internamento, muitas das coisas que sei é o que me contam. Estive “inconsciente” durante alguns dias e as enfermeiras já tinham chamado a minha família para se despedirem de mim. Subitamente, passado alguns dias, não sei precisar pois não tenho noção, comecei a melhorar aos poucos e consegui ficar boa. Um mês depois precisamente, fui internada com uma pneumonia, líquido no pulmão e infeção pulmonar. Drenaram o líquido do pulmão, tinha cerca de um litro de líquido no pulmão esquerdo.
Mais um mês e mais um internamento, e último até hoje. Depois de ter feito a cirurgia às paratiroides, era normal o meu cálcio não estar estabilizado. Tudo começou também com uma dor de dentes. Eu tinha dores de dentes terríveis, chegava a chorar com dores. Ia ao estomatologista, ele examinava-me e não encontrava qualquer problema que me provocasse as dores. A par disso, sentia umas tonturas muito leves. Melhor que ninguém conhecemos o nosso corpo, e eu sabia que não era normal tais sintomas e que algo não estava bem. Dirigi-me mais uma vez até ao hospital, e depois de fazer análises, descobriram que o meu cálcio tinha um valor de 22. Leram bem, 22, quando o normal era 8,5. Fiquei internada e o pior confirmou-se, teria de fazer pelo menos uma sessão de hemodiálise. Fiquei aterrorizada. Eu já não fazia hemodiálise há quinze anos. E se eu me sentir mal como me sentia quando era criança??? Aquilo é horrível, eu tenho pânico daquela sala de hemodiálise. Cada vez que lá entrava quando estava internada (e tinha de entrar todos os dias), eu só olhava para as pessoas ali deitadas e só pensava “Deus queira que eu nunca tenha de voltar para aqui”. Mas como sempre, tinha os melhores médicos e enfermeiros ao meu lado. Sou acompanhada pelos profissionais de saúde do Hospital de Santa Cruz em Carnaxide há quase 20 anos e posso dizer que é a minha segunda casa e a minha segunda família. São os meus anjos da guarda, as pessoas extraordinárias que tomam conta de mim e a quem eu confio plenamente a minha vida.
Depois deste ano complicado, tudo voltou ao seu devido lugar. Tento manter-me positiva, forte e com fé, não só por mim, mas por toda a minha família que eu amo, e que tenho a certeza que não gostariam de me ver desistir. Passe pelo que tiver de passar, eu vou manter-me sempre de cabeça erguida e lutar sempre até ao fim. Como costumo dizer, o que faz de mim a pessoa que sou, são todos estes obstáculos que aparecem no nosso caminho e as pessoas boas que nele se atravessam. Sem todos estes fatores não aprendíamos, não nos fortalecíamos e a vida não tinha graça. Um dia quando me for, faço questão que se lembrem de mim como uma pessoa forte e lutadora, não como uma pessoa que se deixou ir abaixo porque estava doente. Tenho a minha alegria de viver, não a mesma de quando era transplantada, mas a minha própria alegria de viver. Pequena em tamanho, mas grande em força, e com força de vontade tudo se consegue. As coisas boas acontecem quando menos esperamos, o hoje é hoje e o amanhã logo se vê. Rumo ao segundo transplante!