O meu nome é Célia Branca, sou insuficiente real há 30 anos e sou utente da Fundação Renal Portuguesa, em Portalegre. Na altura do diagnóstico, em 1988, tinha 14 anos e não foi nada fácil lidar com a doença e com todas as restrições que acarreta. Não foi fácil uma rapariga, na adolescência, ser privada de uma série de coisas. Não podia beber nem comer o que queria, inclusive em festas com amigos, e estas condicionantes tiveram um grande impacto na minha vida. Inicialmente nem sabia ao certo o que era a hemodiálise, só mais tarde me fui apercebendo da sua funcionalidade e da importância que tinha para o meu bem-estar. No entanto todo este processo foi muito, muito complicado. Na altura a minha mãe até sugeriu que eu deixasse de estudar. Logicamente que foi bastante difícil e teria sido mais fácil ter desistido dos estudos, pois tinha que sair mais cedo das aulas para fazer hemodiálise e tinha que estudar durante o tratamento, mas resolvi levantar a cabeça e seguir em frente.
Comecei por fazer hemodiálise no Hospital Curry Cabral, depois fui transferida para Évora e mais tarde para o antigo Sanatório de Portalegre. Foi nessa altura que conheci o Dr. António Sousa, médico nefrologista que me tem acompanhado desde então. Mesmo tendo faltado a muitas aulas, nunca chumbei. Felizmente, tive colegas que me ajudaram e as professoras também foram impecáveis. Nos primeiros quatro anos que fiz hemodiálise, tinha uma amiga que me acompanhava em todos os tratamentos e estudava comigo.
Fui transplantada a 23 de setembro de 1992, precisamente 4 anos após o início da hemodiálise. Tinha 17 anos, estava no 10.º ano e ia iniciar o 11.º. Nesta altura ainda foi mais complicado, pois tive que faltar cerca de 6 meses, por causa do risco de infeções. Felizmente tive a sorte de ter uma colega que me levou os apontamentos e, apesar de não estar presente nas aulas, estudava sozinha. Estudava em Elvas e terminei o ensino secundário sem nunca reprovar. Em metendo uma coisa na cabeça, é complicado tirá-la, porque tenho mesmo que a conseguir! Não desisto tão facilmente!
O transplante durou 20 anos, mais do que o normal, porque sempre cumpri todas as recomendações criteriosamente. Durante o tempo que estive transplantada, sempre tive o desejo de ser mãe, mas de cada vez que perguntava aos médicos se podia engravidar, os médicos respondiam que sim, mas que teria que deixar de tomar os comprimidos do transplante, o que poderia levar à rejeição do rim. Perante estas informações, já tinha desistido por completo do sonho de ser mãe. Entretanto, quando voltei à hemodiálise, fui à consulta do Dr. António Sousa, que me perguntou se eu tinha filhos, ao que eu pensei: “Que grande lata! Nunca me deixaram ter filhos!” Foi então que o Dr., percebendo que a vontade de ser mãe se mantinha, me encorajou. Disse que teria que fazer hemodiálise todos os dias, para que o sangue permanecesse o mais limpo possível, mas como estava a retomar a hemodiálise e o rim transplantado ainda não tinha parado totalmente, estava na altura ideal de ter filhos. Disse-me também que era preferível arriscar a gravidez durante a hemodiálise, pois durante o transplante correria mais riscos.
Passados uns tempos, quando fui fazer os exames de pré-transplante, mais propriamente uma ecografia, acabei por descobrir que estava grávida e já estava de quatro meses! Quando soube, não sabia se devia ficar alegre ou preocupada. E quando contei, ninguém queria acreditar em mim!
Senti que a equipa da clínica ficou preocupada, e tive perfeita noção que não estavam habituados a esta realidade de uma mulher grávida em tratamento regular de hemodiálise. Tenho noção que sou um caso raro. Primeiro fui falar com o Dr. António Sousa, que me encorajou e garantiu que me iria ajudar a ter o meu filho. Quando se confirmou que estava tudo bem, fui encaminhada para uma médica nefrologista especialista em acompanhamento de gravidez de risco em Santa Maria. Inicialmente passei a fazer hemodiálise quatro vezes por semana. Entretanto passei para Évora, porque fui aconselhada a realizar a hemodiálise em meio hospitalar, por ser uma gravidez de risco. Em Évora fazia seis vezes por semana, de segunda-feira a sábado. Foi complicado, porque trabalhar e ir para Évora todos os dias fazer hemodiálise tornou-se muito cansativo.
Entretanto, numa ecografia verificaram que o João Pedro não estava a crescer e fui encaminhada para o Hospital de Santa Maria, onde fiquei internada desde 29 de agosto até ao dia em que ele nasceu, 4 de outubro de 2012. Foi difícil estar a 200 Km da família e não receber visitas regularmente. Pude contar com o apoio da equipa de enfermagem e da equipa médica que, apesar de serem impecáveis, não é a mesma coisa. Só tinha visitas aos fins de semana e não falharam nenhum, mas a primeira semana que fiquei internada foi complicada e fartei-me de chorar.
Senti que tive uma gravidez normal. A principal diferença foi a necessidade de fazer hemodiálise todos os dias. Náuseas e vómitos não tive. Não posso dizer que tenha sido uma gravidez atribulada, porque foi perfeitamente normal. Provavelmente até mais normal do que em muitas mulheres saudáveis. No entanto, acredito que só foi possível levar a gravidez até ao fim porque a qualidade dos tratamentos de hemodiálise evoluiu muito, pois há 20 anos atrás os tratamentos eram bastante mais agressivos e a recuperação era muito mais difícil.
Também fui muito cuidadosa, porque o sangue tinha que estar o mais limpo possível. Se ainda hoje tenho cuidado, naquela altura esse cuidado foi redobrado, para garantir que os níveis estariam o mais normais possíveis, para permitir o crescimento normal do feto, e não o afetasse em nada. Só tinha medo porque durante a hemodiálise a tensão podia oscilar muito e isso ter riscos para o bebé, por isso durante os tratamentos estava muito atenta aos sintomas que sentia. Como tinha muitos cuidados e realizava tratamento todos os dias, trazia sempre pouco peso, e até me perguntavam se não tinha comido. Trazia 300 a 800 gramas de ganho interdialítico, raramente chegava a trazer 1 Kg. Tinha muitos cuidados para garantir que o meu filho não ficaria com doenças. Tinha a vantagem de ainda urinar e, por isso, em relação à alimentação, as recomendações foram de aumentar a ingestão de alimentos. Muitas vezes chegou a acontecer ter que levar potássio na hemodiálise para repor os níveis, ao contrário do que é habitual. Em relação à medicação, como os valores estavam bons, fazia pouca medicação. Na sequência de um aumento da tensão arterial, o parto foi induzido às 37 semanas e aí tive medo. Estive 48 horas entre a indução e o parto e por fim, acabou por ser cesariana. A recuperação foi fácil. Foi possível amamentar os dois primeiros meses, e quando estava na hemodiálise era dado leite materno que retirava previamente com bomba.
Para mim ser mãe é a coisa mais maravilhosa que me aconteceu, foi um presente e aquilo que mais tinha desejado. Sempre quis ser mãe e ficaria sempre com desgosto caso não o tivesse sido. O meu filho veio dar-me força para continuar os tratamentos de hemodiálise. Se hoje ainda não desisti, é por ele. Se hoje aqui estou, é por ele. Ele dá-me muita força. Às vezes perguntam-me porque é que trago pouco peso e eu respondo que tenho um filho que quero acabar de criar. E se quero ser transplantada, tenho que estar na melhor condição possível.
Atualmente ele tem 5 anos, não sabe o que é a hemodiálise, mas sabe que nestes dias vou ao Dr. Sempre foi habituado assim e não estranha, já faz parte da rotina dele. Durante os tratamentos fica com o meu marido ou com as minhas irmãs. Normalmente quando chego ao tratamento ligo-lhe e falamos um bocadinho. A todas as mulheres que desejam ser mães e sofrem de doença renal crónica deixo uma mensagem de esperança, que vão à luta, que não tenham medo, porque ser mãe é a coisa mais maravilhosa que há!