
Em 8 de janeiro de 2021 escrevia o seguinte desabafo no meu diário gráfico: “Abandonei hoje o quarto com vista para o rio. Ele foi a grande testemunha da mágoa que me assolou por estes dias. Foram, possivelmente, os 11 dias mais estranhos pelos quais passei.
Quando o Dr. João chegou ao quarto pela hora de jantar, a notícia foi dada de forma pragmática e, naquele momento, o quarto 514 foi abalado por um sismo de grande magnitude. O veredicto: Doença Renal Crónica Terminal e depender de uma máquina três vezes por semana para continuar a viver. Que terror!
Lembrei-me de um senhor da minha aldeia que fez hemodiálise durante anos. Lembro-me de ser pequena e ver aquele senhor ir no táxi para Lisboa tantas vezes, se não fosse morria. Lembro-me que ficava aterrorizada com essa ideia. Com a ideia de que poderia acontecer a mim, aos meus pais. Afinal tinha mesmo acontecido.
Como se reage a isto? Parece que vou viver dentro dum filme de ficção científica. Às primeiras lágrimas, o Dr. João precipitou-se e disse: “Nada de chorar! Isso não resolve nada. Não é solução.” Respirei (como consegui…), olhei para o meu companheiro e questionei se estaria preparado para a longa batalha que se avizinhava. A resposta foi pronta, estaríamos juntos.
Depois… depois foi tempo de luto. Um luto que teria de ser obrigatoriamente breve, uma vez que havia toda uma rotina, uma vida nova pela frente que implica tudo e todos os que me rodeiam. No quarto com vista sobre o rio pude chorar e reagir com todas as forças que o meu parco corpo ainda encontrava.” Quando cheguei ao Hospital, sabia que o estado seria grave, ainda que não imaginasse a razão.
Sentia-o há muito, apenas isso. Foram anos de dores, de saúde débil, de uma constante batalha face aos olhares duvidosos dos outros, de cansaço constante, de consultas nas diversas especialidades e exames sem quaisquer conclusões relevantes. O diagnóstico foi claro e doloroso de ouvir: síndrome urémico com rins pequenos associado a anemia (6 g/dl), retenção azotada (ureia/creatinina 223/9,6) e sedimento nefrítico.
Seguiram-se duas transfusões de sangue, um processo de depuração pelo método contínuo durante 48 horas, sem quaisquer efeitos na função renal, pelo que se seguiu a hemodiálise convencional. Teria sido da pressão arterial que nunca foi controlada pelos fármacos que tomava? Teria sido dos anti-inflamatórios e analgésicos que tantas vezes tomei para as terríveis enxaquecas?
Na última ecografia renal, em maio de 2020, não soaram grandes alarmes, foi-me apenas dito que o rim esquerdo estava mais pequeno, que tinha um quisto e que as dores poderiam estar associadas com um problema hepático, o que não se veio a confirmar. Por tudo isso, a etiologia da minha doença é considerada desconhecida.
Os rins estariam já tão danificados, com tantas cicatrizes e pequenos que os nefrologistas descartaram a hipótese da realização de quaisquer biopsias, uma vez que seriam demasiado invasoras e inconclusivas. A solução para que possa viver passou a ser uma máquina.
Nas primeiras sessões de hemodiálise achei que estava a alucinar. As fístulas gigantes e as agulhas que via na sala eram visões horrendas, mas acho que o pior de tudo foi tomar consciência de todo o processo que se avizinhava e o momento em que o enfermeiro chefe do serviço de hemodiálise do Hospital me fez saber que um transplante nunca significa a cura desta patologia.
Este caminho que iniciava não tinha volta. Curiosamente, havia na sala um outro doente que teria aproximadamente a minha idade e, rapidamente, colocaram-nos em contacto. Estes primeiros diálogos com doentes que estão na mesma fase da vida que nós pode ser fulcral para o modo como aceitamos a doença.
Sentimos que não somos os únicos, existem mais que não desistiram e avançaram com sua vida. Aliás, o companheirismo e o ambiente do centro de hemodiálise foram deveras importantes no meu processo. O centro tornou-se a minha segunda casa e as pessoas com quem me cruzo por lá (e não falo apenas do pessoal médico) tornam-se fundamentais para que possamos sentir uma maior leveza de espírito.
Depois existem os nossos colegas. Quem são estas pessoas ligadas ao meu lado? Naquele local não interessa a profissão, a idade, as habilitações académicas, somos todos iguais. Claro que são inevitáveis a aproximação e os laços com alguns dos nossos parceiros, muitos inspiram-nos pela sua luta constante face às realidades árduas da vida e pela sua resiliência.
Em relação ao processo de transplante, em maio de 2021 entrei para a lista de transplante de cadáver, nos Hospitais de Santa Cruz e de Santa Maria (nos quais sou seguida) e no verão do mesmo ano o meu marido iniciou (no Hospital de Santa Maria) uma bateria de exames e avaliações para ser o meu dador vivo.
Em dezembro de 2021, a poucos dias do Natal chegava o veredicto: apesar de o João ter o mesmo tipo de sangue, a nossa compatibilidade era residual (em 6 itens, apenas 1 era correspondente). Posto isto, avançámos para o programa de dador cruzado. A esperança fica assim maior.
Também aqui o acompanhamento tem sido irrepreensível, mostrando-se as equipas médicas sempre muito disponíveis para algumas das nossas ansiedades (principalmente da minha parte). Passados quase dois anos após ter sido diagnosticada com IRC, sinto que a vida continuou.
Apesar de não exercer a minha profissão de docente neste momento, por indicação da junta médica, tento nunca estar parada, apesar das minhas limitações. Não foram descurados os tempos de qualidade com a família, as férias (já conheci 11 centros de hemodiálise), a casa e passou a existir tempo para pensar alguns projetos que durante anos estiveram cristalizados.
Afinal, a doença não é o fim e pode ser um recomeço, ainda que lento. Não obstante alguns problemas que tive neste percurso, principalmente com a primeira fístula, desistir nunca foi uma opção. Foi com esse espírito que, ainda no Hospital, comecei a tricotar a “Penélope” que, tal como a Penélope de Ulisses, simboliza uma espera, a espera de um rim que um dia chegará.
A Penélope tornou-se, assim, uma terapêutica para os momentos mais difíceis, por isso o trabalho não é contínuo. Sempre que a ansiedade me assola mais, pego na agulha, na lã e lá vamos nós. No entanto, ao contrário da doce Penélope de Ítaca, nunca desfaço o que vou tricotando, a minha Penélope cresce ao longo do tempo que passa.
É uma peça dinâmica que ficará para sempre comigo, inacabada e incerta, tal como os transplantes o são. Curiosamente, há muito tempo que não regresso à Penélope, felizmente não tem sido necessário. O ano de 2021 ficará gravado na minha memória como um ano agridoce.
Se, por um lado, foi o ano em que me foi diagnosticada a IRC, foi igualmente um dos anos mais felizes da minha vida, uma vez que pude ver as minhas duas filhas ingressarem no ensino superior (a mais nova na licenciatura e a mais velha no mestrado). Para mim, um pequeno sonho concretizado aos 48 anos de idade.
Por último, não posso deixar de mencionar o apoio que tenho sentido por parte de todos (desde os meus pais, aos meus familiares remotamente distantes, passando pelos meus amigos, colegas ou vizinhos) agradeço abertamente todo o carinho incondicional demonstrado.