Chamo-me Ema Pascoal e sou a mãe do menino Emson Chau, insuficiente renal desde os 4 meses de idade e que conta hoje com 17 anos.
Será muito complicado resumir os 17 anos da minha experiência de mãe de um menino que se tornou insuficiente renal por negligência médica em Moçambique, e nem vou entrar em detalhes sobre este assunto… Entretanto, nestes 17 anos, momentos marcantes estão todos os dias presentes na minha vida:
1 – O dia em que a Pediatra que assistia o Emson, ainda com 2 meses de idade, me entregou o meu filho nos braços e disse: “Este bebé está com todo o tipo de infeções e com os resultados dos exames de sangue todos muito mal. Só pode ser seropositivo! A senhora fez os testes de HIV durante a gravidez? Olhe, leve o seu filho e volte mais tarde para interná-lo.”
2 – O dia em que, depois de cerca de 45 dias internado numa clínica particular, pagando valores de que não dispunha, sem respostas satisfatórias e vendo o Emson a “sucumbir” a cada dia que passava, decidi pedir alta do hospital e seguir, por conta e risco, para a África do Sul, em busca de uma resposta para o meu filho.
3 – 23 de novembro de 2000, o dia em que, chegados à África do Sul, foi descartada a hipótese do Emson ser HIV positivo e foi diagnosticado com válvulas da uretra posterior e que, dado o tempo decorrido sem qualquer intervenção, acabou sofrendo o rim do lado esquerdo, que estava em falência total…
Desde então, entreguei completamente a minha vida a esta causa, tendo em conta que era casada, tinha outro filho na altura na altura com menos de 3 anos, era funcionária bancária e estudante em regime pós-laboral na Licenciatura em Contabilidade e Auditoria.
Após cerca de 8 cirurgias a que foi sujeito para a reconstituição da uretra e encerramento da vesicotomia, aos 5 anos de idade, ano em que também me separei do pai dos meus filhos, o Emson deixou de ser seguido pelo Urologista e passou a ter seguimento unicamente Nefrológico. Tudo isto era feito na África do Sul, visto que em Moçambique não havia condições nem médicos de especialidade para o seu caso.
Entretanto, devo dizer que sempre tive muito presente as orações na minha vida quotidiana, para compensar a falta que fazia ao Teosson, o meu outro filho, as minhas ausências ao trabalho e, não menos importante, à faculdade. O Teosson, ainda assim, sempre foi um filho muito equilibrado, sendo ele hoje o meu verdadeiro “ponto de equilíbrio” diante de tudo o que tive e tenho enfrentado para garantir a longevidade do Emson.
4 – Em 2012, quando o médico na África do Sul alertou para a necessidade do Emson, ou conseguir um dador vivo compatível para o transplante, ou iniciar a diálise. Foi o momento em que me senti uma mãe “impotente”, pois nem sequer sou compatível com ele. O Emson é A+ e eu sou AB. Preferi achar que assim é a vontade de Deus, pois Ele prefere que eu tenha forças e energias para buscar soluções para o meu filho, pois se eu fosse compatível nalgum momento teria que ficar acamada. Quase nunca pude contar com a colaboração do pai do Emson, aliás, ele já tinha outra família e, obviamente, a sua atenção era diminuta…
Bati a várias portadas, escrevi cartas a várias instituições, escrevi uma carta ao Embaixador de Portugal em Moçambique oferecendo-me para doar um dos meus rins a qualquer criança em Portugal que fosse compatível comigo para que, em troca, o Emson pudesse beneficiar de um rim a partir do banco de órgãos de Portugal de um dador vivo ou cadáver. Mal sabia eu (por falta de informação em Moçambique) que havia um protocolo entre Moçambique e Portugal, no âmbito da Saúde.
Depois de muito “a corda esticar”, e enquanto aguardávamos por respostas aos vários apelos que fui fazendo desde 2012, no dia 23 de novembro de 2015 o Emson foi submetido à cirurgia para colocação do cateter e iniciar a diálise peritoneal (sempre na África do Sul). Entretanto, a partir desta data, embora a minha vida tivesse tomado um novo sentido, também “deixei de ter vida”. Enquanto estivemos na África do Sul, os dias necessários para que eu fizesse o treinamento para depois continuar a fazer a diálise quando voltássemos a Moçambique, foram dias de muita esperança. Passados 15 dias, voltámos a Moçambique com algum material (10 caixas de solução que correspondiam a 10 dias de diálise, pois o Emson fazia 4 ciclos diários) e tínhamos indicações do médico sul-africano de onde poderíamos adquirir as caixas seguintes em Moçambique. Chegados a Moçambique, o referido fornecedor disse-nos que havia mais de um mês que não conseguia importar a solução (Bicavera), porque havia dívidas antigas ao fornecedor e que, por isso, não era autorizada a encomenda para Moçambique. Estávamos já no mês de dezembro de 2015. Passámos dias muito amargos, no entanto incansáveis da minha parte, pois a solução passava por eu voltar à África do Sul a cada semana para ir comprar as caixas e suportar todas as despesas com o transporte das mesmas. Cada caixa de Bicavera pesa cerca de 9,5 Kg e eu só podia trazer no máximo sete caixas no avião, sendo que o Emson consumia uma caixa por dia. Para terem uma ideia, cada caixa custava na altura o correspondente a 52€…
Nunca me passou pela cabeça que o Emson não teria uma solução, mesmo com todos os obstáculos que tivemos, por isso, apesar de tudo isso, sempre procurámos fazer uma vida alegre os três (eu, o Emson e o Teosson).
No dia 12 de dezembro de 2015, quando chego ao trabalho, abro a caixa de mail, vejo um mail cujo remetente não era comum na minha rotina laboral. Antes de abrir o mail, lembrei-me que dias antes recebera uma carta do Embaixador de Portugal em Moçambique que dizia que o processo do Emson já estava encaminhado junto do Ministério da Saúde português. Abri o mail e dizia “Emson Chau, doente com insuficiência renal crónica. Informo que está autorizada a evacuação do mesmo e consulta marcada para o dia 3 de janeiro de 2016 no CHUC.” Naquele momento, os meus olhos encheram-se de lágrimas e os meus colegas não perceberam porque eu me ajoelhava e rezava.
A 12 de janeiro, o Emson iniciou a avaliação no Hospital Pediátrico de Coimbra, tendo sido preliminarmente informada que ele reunia condições para entrar em lista de espera, devendo entretanto residir em Coimbra. Regressámos a Moçambique 15 dias depois e, em abril, tornámos a voltar a Coimbra para nos instalarmos e iniciar o estudo para o transplante.
No dia 23 de novembro (fazia neste dia 1 ano que o Emson iniciara a diálise peritoneal e 15 anos que decidi seguir para a África do Sul), eram 20 horas, o Emson tinha terminado o jantar e já se preparava para se ligar à cicladora. Nesse dia tinha chegado de Moçambique uma tia do Emson e, enquanto conversávamos, eu preparava a máquina e digo: “Andamos nesta luta há 16 anos, mas eu sinto que já estou quase a vencer.” Dito isto, toca o meu telemóvel: “Temos uma boa notícia para si, se o Emson ainda não jantou, não lhe dê de comer e não o ligue à cicladora, chegou um rim para ele. Prepare-o e leve-o já para o Pediátrico.”
Nos dias 23 e 24 de novembro eu vivi e testemunhei um verdadeiro milagre! O Emson foi preparado e foi para o bloco por volta da meia-noite. Aparentemente a cirurgia correu bem, por volta das 4 da madrugada do dia 24 saiu do bloco para a UCI. Por volta das 9 horas, constatou-se que o rim recebido não estava a responder, fez um trombo, pelo que voltou ao bloco. O rim tinha sido definitivamente rejeitado e nada mais havia a fazer. Não desesperei. Quando tomei conhecimento fui a correr procurar o Padre, puxei-o pelo braço e fomos à capela. Rezámos juntos e depois pedi ao Padre que me deixasse sozinha. A minha esperança era de que os médicos conseguissem recuperar aquele mesmo rim, mas a Nossa Senhora e o seu Filho responderam-me com muito mais. Voltei ao bloco e nesse instante, sim, presenciei o verdadeiro Milagre, pois exatamente nesse momento chegava um indivíduo transportando uma arca azul, que entregou à Enfermeira que esperava na porta do bloco e disse: “Venho trazer o rim para o rapaz que rejeitou o que recebeu antes.” A moça olhou para mim e fez um sinal de “Sim, é para o teu filho, ele vai ser retransplantado!”
Inédito, como alguns diziam nesse dia, dois rins no mesmo dia quase sem ter saído do bloco?!! Para mim foi mais do que esse tal “inédito”, foi sim uma resposta Divina! Os dias 23 e 24 de novembro ficarão para sempre na minha e na Vida do Emson, passou a ser a data do seu renascimento…
Peço desculpas por me estender um pouco mais, mas é sempre muito difícil falar de forma resumida da história do Emson ou da minha experiência como mãe sem estes momentos que no final me emocionam sobremaneira…
Entretanto, hoje sabendo que continuamos com este desafio de forma mais controlada, após também ter ultrapassado as ameaças de rejeição após o transplante, sou uma mãe feliz. E, mais do que feliz, percebo a cada dia que sou uma mãe que tem a resiliência suficiente para “trazer o barco”. Enquanto vivemos na Casa Acreditar pude perceber que a minha experiência não foi ou não era mais comovente do que a de ninguém. Só Acreditando Alcançamos. Como mãe e, principalmente como solteira, cuidando de dois filhos, sempre me agarrei a um ditado de que gosto muito, do William McFee” O mundo não está preocupado com as tempestades que encontraste, quer saber se trouxeste o barco.”