A pielonefrite crónica foi diagnosticada só aos 10 anos. Digo “só” porque deveria ter sido bem antes! Não me lembro de ter sido saudável: toda a minha infância foi marcada por infeções respiratórias constantes, combatidas com muitos antipiréticos e antibióticos fortes. Logo com 22 dias, tive uma pneumonia com paragem cardiorrespiratória. A minha avó materna salvou-me, apesar de analfabeta, fazendo-me respiração boca a boca! Desde que entrei na escola, aos 4 anos, só me lembro de ir com muitas dores de cabeça e com muita sede. Mas tomava um analgésico, chegava lá e, com a distração, passava-me tudo… Fui operada à garganta e ao nariz aos 5 anos, já tarde demais. Tenho um rim do tamanho do de um recém-nascido e o outro pouco maior do que um feijão. Sempre urinei muito, bebia litros de água, nunca inchei, mas a urina era muito clara, quase transparente. Ia quase todos os meses ao Pediatra que não ligou às cefaleias nem à sede. Pior: nunca me mediu a tensão arterial! Um dia, fui a um alergologista, médico que seguia a minha irmã que era asmática. Ele lembrou-se de medi-la: tinha 190 de mínima! A máxima ultrapassava o aparelho!
Aos 10 anos, comecei a ser seguida pelo urologista Dr. Adolfo Coelho, que me fez então análises à ureia, potássio e creatinina, com valores já muito elevados. Iniciei então uma dieta sem sal e de baixo teor proteico. Comecei a tomar anti-hipertensores. Passei, então, o melhor ano da minha vida: os valores analíticos melhoraram substancialmente e a tensão arterial baixou consideravelmente.
O médico sugeriu a meus pais uma ida a Madrid, no sentido de auscultar os médicos espanhóis acerca da possibilidade de a minha mãe me doar um rim. Estivemos lá uma semana. Meu pai não tinha Segurança Social e inscreveu-se logo, a conselho do médico, avisando que era imprescindível, pensando já nos meus tratamentos futuros. Mesmo assim, estive lá internada uma semana numa clínica, graças à ajuda financeira de amigos. Sempre à minha cabeceira, minha mãe foi aconselhada a não doar o seu rim, pois as incompatibilidades comigo rondavam os 50%. Saí de lá com uma dieta similar e já com a prescrição de carbonato de cálcio que me foi lamentavelmente retirado, logo que iniciei a hemodiálise, ainda com 11 anos! Poucas semanas antes desta, ainda fiz uma diálise peritoneal muito incipiente, durante 24 horas, onde sofri fisicamente a bom sofrer! E meus pais não menos, psicologicamente falando. Fora uma tentativa de recuperação da função renal, mas em vão pois, passado pouco tempo, iniciei a hemodiálise em novembro de 1974, até hoje, sem interrupção. Nessa altura, outro choque me aguardava: os médicos mandaram-me parar o meu percurso de ginasta desde os 4 anos e já em competição na então incipiente modalidade de ginástica rítmica desportiva. Foi como se me tivessem tirado o chão debaixo dos pés! Hoje é felizmente o contrário: incentiva-se, e bem, os doentes à prática desportiva!
Com a hemodiálise, começou a tarefa mais importante de meus pais: o constante suporte, incentivo e apoio que sempre me deram em quase tudo. E mal sabíamos as dificuldades que juntos iríamos enfrentar contra o desconhecimento, a ignorância de uma sociedade eufórica que dava os primeiros passos em democracia e no associativismo. A maioria dos profissionais de saúde não sabia o que era a hemodiálise e as lutas foram tremendas até se chegar a hoje em que é raro o cidadão que desconheça o que é fazer diálise…
Comecei a fazer 5 h de diálise, depois passei para 7 h durante anos, pois as máquinas, embora ruidosas, eram pouco eficientes, os filtros iam-se lentamente aperfeiçoando, cujos resultados se refletiam nas análises mensais. Depois, durante largos anos fiz 6 h de diálise, até chegar às 4h atuais. Chegava a ler numa só diálise um livro dos 5 e um dos 7, da Enid Blyton! Infelizmente, logo com 13 anos, comecei a apresentar deformidades ao nível dos joelhos e da coluna vertebral, sem que os médicos apresentassem qualquer solução, e a osteodistrofia foi-se agravando assustadoramente. A hiperfosfatémia era combatida com o Pepsamar, ou seja, hidróxido de alumínio que, por sua vez, aumentava o nível de alumínio nos ossos e no cérebro, com riscos de demência nos mais idosos. Não havia vitamina D que só apareceu em cápsulas em 1980, medicamento muito caro na época. Também nesse ano, iniciou-se o transplante renal em Portugal. Infelizmente nunca pude fazê-lo pelo facto de a minha cifoescoliose me ter provocado uma restrição respiratória tal que me impede de receber anestesia geral! Quando terminei o liceu, em 1979, já andava com canadianas e tinha distensões musculares horríveis, por falta de vitamina D, e meus pais tinham de me levar ao colo! Para conseguir estudar, levava uma transfusão de sangue por ano, pois não havia eritropoietina. Levava injeções de ferro, complexo B e vitamina B12. Tomava 20 e tal comprimidos por dia, tirando-me completamente o apetite. Aos 17 anos, pesava apenas 40 kg, continuava hipertensa e estava à beira de um esgotamento nervoso que se refletiu na queda de cabelo, agravada pelo excesso de heparina, que me levava a hemostases de quase 2h, após a diálise!
Apesar de tudo, entrei na Universidade e licenciei-me com 21 anos em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Franceses). No dia em que fazia 22 anos, fiz uma tripla comemoração perante mais de 50 pessoas entre familiares e amigos: 10 anos de diálise, o fim do curso e ter começado a dar aulas!
Dei aulas durante 30 anos no Ensino Secundário, 27 dos quais no curso noturno. Nunca senti qualquer discriminação por parte de colegas e alunos. Pelo contrário, as ofertas de ajuda eram muitas e sinceras. Em 30 anos, faltei por junto 30 dias, no máximo!
A minha deficiência motora levou-me a várias lutas pela obtenção de uma sala fixa na Escola, que me isolava dos colegas, pois a sala dos Professores estava no piso superior. Assim, iniciei uma luta de 7 anos pela instalação de um elevador na Escola.
Em 1993, terminei o mestrado em Linguística Portuguesa Histórica; em 2010, acabei o doutoramento em Literatura Portuguesa.
Em 2011, parti espontaneamente o colo do fémur, estive 5 semanas internada e 5 meses acamada. Em dezembro de 2012, comemorei meio século de vida, dando graças a ter sobrevivido a tanto, impossível sem o apoio sobretudo de meus pais, sobrinho e amigos. Era o princípio do fim da minha vida profissional ativa, conducente à reforma por incapacidade física, em 2014.
Felizmente a minha cabeça não parou e, embora de forma não autónoma mas num carro adaptado, fruto de muita resiliência, tem-me levado a várias paragens europeias, a atividades de trabalho voluntário, a palestras, à realização de cursos presenciais e online, à leitura e à escrita…