Pedem-me amiúde que partilhe pedaços da minha história de vida, seja através de palestras ou de artigos como este que com grande entusiasmo aceitei escrever para a Associação Portuguesa de Insuficientes Renais.
Quanto tinha 31 anos, e após alguns meses de enfraquecimento do meu estado de saúde e da consequente perturbação psicológica que a dúvida sobre a razão da minha debilidade me provocou, foi-me diagnosticado um cancro no testículo, do qual existiam já metástases noutras zonas do corpo, nomeadamente junto ao ureter, situação que comprometia o funcionamento do meu rim direito, originando muito incómodas cólicas renais. Alguma ignorância sobre o tema fez com que lidasse relativamente bem com o diagnóstico do problema oncológico, até porque quase de imediato me ocorreu a situação vivida por Lance Armstrong, ciclista norte-americano que padeceu de um gravíssimo cancro no testículo e que, não só sobreviveu, como venceu seis Voltas a França, considerada a mais exigente prova de ciclismo do mundo (os contornos da forma como o fez só seriam conhecidos muito mais tarde).
Contudo, após o início dos tratamentos da agressiva quimioterapia, comecei a sentir as agruras dos efeitos secundários, tendo sido nessa altura que comecei a ter a real noção do problema com que lidava. Revoltei-me, vitimizei-me, dirigi as minhas frustrações de forma errada, enfim, senti-me absolutamente desesperado e sem futuro. Até que um dia, como que por magia, tudo mudou. Apercebi-me que era inútil e frustrante viver focado na morte ou na cura, duas coisas que não podia de forma alguma controlar, e passei a viver focado em mim, nas coisas boas que tinha à minha volta, sobretudo na minha família e nos amigos, e naquilo que ainda podia fazer, naquilo que podia produzir, naquilo que me dava prazer, fosse olhar um pássaro no céu, caminhar descalço na praia ou cheirar uma flor do jardim da minha mãe. E quando comecei a explorar esse território, tentando viver da forma como vivia antes de estar doente, a minha ansiedade diminuiu drasticamente, assim como o meu desespero e a minha frustração. Apesar da doença, voltei a ser feliz.
A certa altura, a doença entrou em remissão e senti-me o super-homem. Tinha ultrapassado o cancro. Contudo, um ano mais tarde, a doença voltou. E voltou ainda pior. Tinha-se espalhado e afetava outros órgãos. Fui novamente submetido aos tratamentos de quimioterapia e a diversas cirurgias, tentando sempre fazer uma vida normal e feliz. Até que a doença entrou novamente em remissão. Todavia, desta vez já não me senti o super-homem. A segunda vez que tive cancro fez-me compreender melhor a imprevisibilidade da vida. Sete meses depois, a doença voltou, e voltou ainda pior do que da segunda vez. Repetiram-se todos os tratamentos de quimioterapia e fui ainda submetido a dois autotransplantes de medula óssea que, até à data, mais de dez anos volvidos, debelaram o cancro. Foi durante os dois autotransplantes de medula que escrevi um diário que posteriormente resultaria num livro intitulado «O sofrimento pode esperar», um relato cru sobre o que vivi durante a situação oncológica, um relato sobre esperança e sobre aproveitar a vida apesar dos infortúnios. Um relato onde não há queixume ou vitimização, simplesmente vontade de viver uma vida normal.
Na sequência dos tratamentos de quimioterapia, a minha situação renal ficou bastante afetada. O rim direito ficou praticamente sem funcionar, enquanto o esquerdo, saudável no início da doença oncológica, estava também debilitado por ter sido sujeito ao esforço hercúleo de filtrar os químicos que, por mais do que uma vez, me salvaram a vida. Cerca de sete anos depois de resolvida a situação oncológica, iniciei a hemodiálise.
Quando fui pela primeira vez à clínica onde faria os tratamentos, levava mil e uma perguntas em mente, nomeadamente esclarecer se iria ter alguma limitação, pois não queria, de forma alguma, parar de trabalhar e de treinar, ou seja, queria continuar a fazer a minha vida normal. O enfermeiro que me recebeu foi, mesmo sem o saber, particularmente expedito a responder-me a uma das minhas dúvidas. E fê-lo assim que me viu pela primeira vez: «Mas que belos bíceps, isso daqui a pouco tempo já desapareceu tudo!» Não relevei muito a irónica graçola, mas achei-a despropositada, pelo que fiquei a ponderar durante alguns segundos sobre se seria aquela a melhor forma de receber alguém cuja vida, de uma forma ou de outra, seria obviamente condicionada com aquele tratamento, quando mais não fosse, pela frequência e duração do mesmo. Sei que não o fez por mal, mas exige-se algum tato nestas situações. O mesmo tato que seria recomendável a uma das senhoras que conversava na sala de espera nesse dia e que, a dada altura, elevou a voz para que eu ouvisse a seguinte frase: «Isto da hemodiálise é para a gente ir morrendo aos poucos». Encarei-a nos olhos. Naturalmente que desviou o olhar. Nada fala melhor que um olhar. Prossegui o meu caminho de encarar aquele tratamento como algo de bom para mim e não como um penoso castigo, o que certamente tornaria a situação muito dolorosa.
Na hemodiálise, a paciência é um bem precioso. E considero ser a paciência a única solução em momentos em que não nos é possível fazer mais e temos simplesmente de nos agarrar aos mais básicos instintos de sobrevivência, os quais devemos respeitar, tendo a humildade de perceber que a vida tem ciclos, tal como a natureza e o nosso corpo. Durante todo o tempo em que fiz hemodiálise não houve um dia em que me tivesse queixado por ter de ir para a clínica fazer o tratamento. Aliás, nunca me ocorreu sequer um pensamento do género «que chatice, lá tenho eu de ir para a hemodiálise». Nunca. Confesso que a colocação das agulhas me causava alguma apreensão, mas nessa altura repetia para mim próprio uma frase que li há muitos anos num livro de sabedoria oriental: «aquilo que combato enfraquece-me, aquilo com que coopero fortalece-me». Deixava fluir e tudo corria bem. Não conto isto para ser louvado. Isso não me interessa, acreditem. Conto-o para reforçar a importância que tem a forma como encaramos o que vivemos. Se partirmos para algo com um pensamento negativo, com uma vontade negativa e o foco no que determinada atividade tem de mau, claro que tudo vai parecer um martírio. Isto pode parecer conversa motivacional de bolso, mas garanto que não é. Já tive de encarar e cumprir rotinas extremamente pesadas, situações relacionadas com tratamentos que envolvem dor física, que julgava impossível cumprir com leveza. E garanto-vos que consegui. Simplesmente por ter encarado essas realidades com aceitação e espírito positivo. Se vemos os acontecimentos como permanentes, sofremos. Se vemos o que é subjetivo como se fosse objetivo, sofremos. O sofrimento deriva sobretudo da nossa interpretação dos factos, e isto serve tanto para pessoas com enfermidades ou limitações, como para gente cheia de saúde, mas para quem tudo na vida é um problema e um drama. Não nos devemos programar de uma forma negativa, devemos ver a realidade como ela é, nem pior, nem melhor. Isso facilita tudo.
Conheci na hemodiálise muitas pessoas que lidavam com os tratamentos como se nada fosse, seguindo as suas vidas de forma alegre e produtiva, gente feliz que me inspirava e me inspira ainda hoje. Contudo, conheci também muitas outras pessoas que viviam derrotados pela doença e pelos tratamentos e que deixaram de trabalhar, de passear, de ir de férias, enfim, de viver a vida normal que é possível fazendo hemodiálise. E não fui capaz de ficar indiferente perante isso. Foi nessa altura que comecei a escrever o meu segundo livro, intitulado «Quantas vidas temos?», um livro sobre vida, sobre as nossas vidas, sobre as vidas de pessoas que lidam com doenças ou não, sobre o que nos faz felizes e infelizes, enfim, que pretende ser um ponto de partida para refletir sobre o que somos, o que queremos ser e o que realmente é importante na vida. Este manuscrito encerra com o capítulo sobre o transplante renal a que fui sujeito cerca de um ano e meio depois de ter começado a hemodiálise.
Fui um afortunado, eu sei. E agradeço-o todos os dias, agradeço a quem perdeu a vida e que graças a isso me proporcionou uma vida melhor. Chego mesmo a imaginar que abraço e agradeço de viva voz ao homem que me doou o rim. É o que sinto que devo fazer para agradecer. E faço-o com todo o respeito pela dor que esta família sente por ter perdido o seu ente querido, tentando sentir um pouco dessa dor em respeito e solidariedade, tendo consciência de que a dor de uma família contribuiu para a melhoria da qualidade de vida de outra. Reservo algum tempo todos os dias para refletir ou meditar sobre isto, e tento ser digno desta bênção ao procurar ser uma pessoa melhor todos os dias. Sinto ser esta a única forma de honrar quem me doou vida.
Não seria nada do que sou hoje se não tivesse tido cancro e não tivesse passado pela hemodiálise. Preferia não ter lidado com isso, mas essas enfermidades mudaram-me, tendo-me conduzido ao estado de viver conscientemente, aproveitando cada segundo de vida, seja qual for a situação em que me encontro, enfermo ou com uma saúde de ferro. Perguntam-me muitas vezes se o otimismo é importante para superar as doenças. Não faço a mínima ideia, mas tenho a certeza de que viver com uma perspetiva otimista em relação ao que estamos a viver pode ajudar-nos a aproveitar melhor cada momento da nossa vida. E o dia que estamos a viver é a única coisa que temos como certa. Ninguém sabe o que seguirá. Acredito piamente que devemos viver com realismo e ter fé em algo, agindo de acordo com essa crença, aceitando a nossa condição sem revolta, vivendo focados no que de bom temos na vida. É esta a mensagem que gostaria de deixar a todos.
Bem-hajam!