
Esta história começa no dia 21 de agosto de 1994, tinha eu apenas 11 meses de idade e entrei em coma em casa, porque os meus dois rins deixaram de funcionar devido a um vírus que me tinha atacado o sistema renal. Fui encaminhada de urgência para o Hospital Pediátrico de Coimbra, onde me foi diagnosticado o Síndrome Hemolítico Urémico.
Os médicos que me acompanharam a partir daí foram o Dr. António Jorge e a Dra. Clara. Iniciei imediatamente a diálise peritoneal através de uma cirurgia urgente, onde me colocaram de imediato um cateter. Na altura era tudo uma novidade, e sendo eu muito pequena, foram necessárias várias intervenções cirúrgicas para que as coisas corressem minimamente bem, sendo que muitas vezes nem existia material adequado para uma criança tão pequena fazer os tratamentos.
Estive em coma duas semanas e nesse meio tempo abri os olhos no dia que completei 1 ano de idade, mas voltei a adormecer. Acabei por recuperar, mas mais tarde quando as coisas já estavam melhores tive um AVC provocado pela diálise que deixou o meu lado direito totalmente imobilizado, perdi o andar e perdi a fala. Foi nessa altura que os médicos disseram que a probabilidade de sobreviver era mínima. Foi um período muito doloroso para a minha mãe, que se debatia para encontrar soluções.
Após esse período, e até atingir os 4 anos de idade, foi sempre tudo muito instável no que dizia respeito à saúde, pois sendo tão nova não conseguia reagir ao que era necessário fazer, nomeadamente vários tratamentos, toma de medicação e ter cuidados de saúde, pois não tinha autonomia suficiente. Foi a minha mãe que teve de aprender a ser uma autêntica enfermeira, dia e noite, todos os dias. Fiz o meu primeiro transplante a 25 de abril de 1998, tinha então 4 anos.
Dessa altura não tenho grandes memórias. As que tenho são todas boas, porque me lembro das brincadeiras que fazia, do contacto que tinha com os médicos e enfermeiros, que eram todos muito atenciosos. Traziam- -me imensos brinquedos que me entretinham durante os vários internamentos a que era submetida. Comia por uma sonda que deixei mais tarde, quando vi o meu irmão mais novo a comer normalmente e quis também comer como ele.
As minhas feições alteraram muito derivado aos tratamentos. Eu tinha o cabelo louro e olhos claros e perdi essa cor. Todo o meu corpo ficou repleto de muito cabelo e bastante escuro. Quando as coisas estavam minimamente controladas entrei no 1º ano da escola com 7 anos, porque passava muito tempo no hospital. Durante esse mesmo tempo fiz tudo o que uma criança dita normal podia fazer. Nunca tive dificuldades de aprendizagem e sempre me destaquei como uma criança inteligente e divertida. Antes deste período o tempo que passava no hospital era complementado com aulas privadas dadas por professores hospitalares.
Assim, a primeira palavra que aprendi a escrever foi «HOSPITAL». Esse transplante durou cerca de 6 anos, até aos meus 10 anos, em 2003. Pela segunda vez iniciei a diálise peritoneal e dessa altura já tenho mais recordações. Fazia em casa com a máquina própria para tratamento. Comecei por fazer 4 vezes por dia, de 3 em 3 horas. Antes da escola, à hora de almoço, depois da escola e à noite. Mas por já não estar a fazer o devido efeito iniciei novamente e fazia durante toda a noite durante 12 horas seguidas.
A minha mãe ligava-me por volta das 18h00 e era até às 7h00 do dia seguinte. Nessa altura lembro-me de ouvir o meu irmão brincar lá fora com os nossos vizinhos. Ouvia os risos de felicidade e pedia mais que tudo que o tratamento terminasse. Tão nova e já sentia tanto na altura. Durante alguns anos, nomeadamente entre os 8 e os 11 era acompanhada em consultas de crescimento e levava uma injeção todos os dias, visto que o meu crescimento estava muito atrasado em relação a crianças da mesma idade.
Foi uma altura dolorosa porque eu não gostava de agulhas e foi uma tormenta, no entanto acabei por conseguir dar a mim mesma. Para mim foi uma vitória. Uma noite veio a melhor notícia de sempre: ia levar um segundo rim. Ligaram por volta da hora de jantar e falaram com a minha mãe, que chegou ao quarto a gritar para eu não comer mais, porque ia ser transplantada. Lembro- -me que era canja o jantar. Digo-vos de coração que nunca em toda a minha vida fui tão feliz. As lágrimas escorriam do meu rosto como se não houvesse amanhã. Mas houve, graças a Deus.
Dei entrada no Hospital da Universidade de Coimbra, porque nesta altura as consultas já não eram no Pediátrico, e passei a noite a fazer exames, antes de me levarem para o bloco. Estávamos a 6 de outubro de 2005. Fui transplantada no dia seguinte, dia 7. Não me recordo do pós-operatório, só mais tarde das consultas de rotina que eram de três em três meses. Os anos seguintes foram maravilhosos. Frequentei a escola até ao 12º ano e depois frequentei um Curso de Especialização Tecnológico na área de Práticas Administrativas e Relações Públicas em Leiria.
Fiz algumas viagens, nomeadamente Madeira, Espanha e França. Nunca bebi nem nunca fumei e nunca tive essa necessidade, sempre me mantive o mais saudável possível. No entanto, à medida que fui fazendo cirurgias, que até à data de hoje contabilizam cerca de 30, senti sempre alguma vergonha do meu corpo, principalmente durante a adolescência. Mas isso não impediu de arranjar namorado e mantenho esse relacionamento há quase 5 anos, dos quais um ano a viver juntos. No ano de 2019 comecei a sentir-me mal constantemente. Vomitava quase todos os dias, tinha muitas dores de cabeça, enfim não me sentia bem.
Fui várias vezes à urgência do Hospital de Leiria e Coimbra, mas nunca me deram um diagnóstico certo. Uns diziam que podia ser intoxicação alimentar, outros gastroenterite, enfim. A última vez que me tinha dirigido a uma urgência hospitalar tinha sido em julho de 2019, onde fui vista por uma médica que até achou que eu poderia estar grávida.
Falou com o nefrologista e mais uma vez mandou-me para casa sem qualquer diagnóstico, a tomar paracetamol caso continuasse a sentir-me mal. Nessa altura eu sabia que algo de mal estava para acontecer. Voltando um pouco atrás, no início de 2019 comprei uma agenda, como faço todos os anos. Ao desfolhá-la, a página do dia 7 de outubro estava rasgada, e soube nesse instante que tudo iria mudar. E mudou. No dia 7 de outubro, pelas 18h, entrei nas urgências em Coimbra novamente, de onde já não saí. O meu rim estava a colapsar e tinha de iniciar rapidamente diálise.
Estive internada seis dias até que me puseram o cateter central no lado direito do pescoço, que trago até hoje. As análises mostravam que o meu organismo não tinha qualquer rasto de medicação tomada, o que não podia ser, porque eu tomava medicação todos os dias, mas como vomitava constantemente o efeito não surtiu. Quando me vi envolvida em tudo novamente lembrei-me do quão frágil sou. Chorei muito e gritei ainda mais. De raiva, de medo, de angústia, de revolta.
Com 26 anos voltava a questionar-me: porquê eu? Preparam-nos para muito coisa, mas não nos preparam para isto. Após me colocarem o cateter, iniciei a hemodiálise que nunca tinha feito pois era demasiado nova. Nunca tive tanto medo na minha vida. Lembro-me perfeitamente como se fosse hoje de ver o sangue a passar nos tubos e pensar que ia morrer. Mas com o tempo habituamo-nos e agora já não me faz qualquer impressão. Saí ao fim de 23 dias e quando voltei para casa agradeci tudo o que tinha. Quis desistir do trabalho, quis terminar o namoro e quis voltar para casa dos meus pais, mas o destino não permitiu que isso acontecesse.
E consegui conciliar tudo com os tratamentos, mantendo assim um quotidiano que me permite fazer uma vida dita normal. Entretanto, tinha de fazer a fístula para que me tirassem o cateter. Fiz a primeira tentativa em janeiro, a segunda em fevereiro e a terceira em março, mas nenhuma resultou. Disseram-me que tenho a artéria demasiado fina para aguentar a pressão da ligação. Em setembro realizei a quarta tentativa e finalmente tive boas notícias.
Entre tudo isto vou iniciar os testes para saber se a minha mãe é compatível comigo, para que me possa dar o rim dela. Caminho assim para o meu terceiro transplante. No decorrer de tudo isto, este ano de 2020 decidi criar um blogue que se chama “Crónica”. Foi criado no sentido de ajudar na aceitação pessoal, principalmente no que diz respeito ao nosso corpo, em aceitá-lo como ele é. Como nós somos, com as nossas cicatrizes. Atualmente trabalho no atendimento ao público, faço a hemodiálise três vezes por semana, tenho o blogue e dou catequese.
Gosto de me sentir ocupada, de me sentir útil. O meu maior desejo de todos é ser mãe. Este é o meu maior objetivo de vida. Gostava que o meu testemunho servisse para dar força a todas as jovens mães e a todas as crianças que, tal como eu, se veem na mesma situação. Mostrar que mesmo quando tudo parece correr mal existe sempre uma luz ao fundo do túnel.
Não podemos perder a força. Temos de lutar para que melhores dias possam vir. Porque virão. No fim já só me resta agradecer. Agradecer a todos os médicos, enfermeiros e auxiliares que têm passado pela minha vida e que me ajudaram de certa forma a chegar até ao dia de hoje. Aos meus amigos e à minha família.
Pode visitar o blog da Margarida em cronicamb.wixsite.com/website