
Antes de começar o meu testemunho propriamente dito, convém contextualizar que sou portadora da Síndrome de Senior-Loken. Trata-se, resumidamente, de uma mutação genética muito rara que afeta essencialmente os olhos e os rins.
Assim, nasci cega, e comecei logo a ser acompanhada por um médico oftalmologista/geneticista, em Coimbra, pela consulta de Pediatria de Desenvolvimento do SNS e por um pediatra amigo da família. Portanto, acompanhamento médico não faltou.
Apesar de até então a doença só ter afetado a parte oftalmológica, era necessário vigiar os rins, pois sabia-se que, a qualquer momento, podiam dar sinal. Com cerca de 6 anos fiz os exames de vigilância, a pedido do oftalmologista, que revelaram apenas a presença de quistos. De resto, nas palavras do médico, tudo normal.
Paralelamente, nas consultas de Pediatria, tanto a minha altura como o peso estavam consideravelmente baixos para a idade. Comer era um pesadelo. Até que um dia, numa dessas consultas, o médico me disse: “Ou começas a comer, ou vais levar picas todos os meses”. Dito e feito. Não era todos os meses, mas mais ou menos de 4 em 4 meses lá ia eu fazer análises, para ouvir sempre o mesmo dos dois pediatras: a anemia estava a agravar.
Creatinina, ureia, potássio? Aparentemente esses conceitos eram desconhecidos para os meus dois pediatras, que nunca equacionaram, sequer, que os meus rins estivessem a falhar, mesmo conhecendo a síndrome. Cheguei, inclusive, a ir a uma consulta de Pedopsiquiatria, por recomendação da médica do SNS, que achava que podia ter anorexia.
Andámos nisto cerca de 2 anos, até que, no final do verão de 2011, e depois de ter feito mais umas análises e de ouvir a mesma lengalenga do pediatra, que sugeriu inclusive aos meus pais que me levassem à urgência e pedissem uma transfusão de sangue, fomos a casa da outra pediatra, que me mandou tomar mais 15 dias de ferro, estando eu super-intoxicada de tudo e mais alguma coisa.
Mas, lembremo-nos, só a anemia importava, porque eu não comia e a culpa era inteiramente minha. Nesse dia, ao voltar para casa, lembro-me de me sentir completamente desorientada, quase sem noção da realidade. Acontece que nessa altura a minha mãe tinha uma cirurgia marcada e pediu à médica para fazer novas análises, pois não ia descansada comigo assim.
Na segunda-feira seguinte (primeiro dia de aulas do meu 4.º ano) fiz essas análises de manhã cedo e, no fim das aulas, o meu pai foi buscar-me e só me disse que estavam à nossa espera, de urgência, no Hospital Maria Pia. O que é que passou pela cabeça da médica nesse dia para de repente me mandar para lá? Nunca saberemos.
Quando lá chegámos, estava uma equipa de médicos de várias especialidades à minha espera, para perceber, afinal, o que se passava com a anemia misteriosa. Surpresa? Olharam para as análises e diagnosticaram-me em 5 segundos: insuficiência renal crónica terminal: “A sua filha precisa de um transplante”. Fui internada e comecei a fazer hemodiálise no dia seguinte.
Acredito que uma das vantagens de ser diagnosticada em criança é que levamos as coisas de forma leve, pois nem nos apercebemos de nada. Fui transplantada a 16 de maio de 2013, em Coimbra. Esperei um ano pelo transplante. Hoje levo uma vida absolutamente normal.
Estou consciente da minha doença, mas não deixo que ela me limite. Não penso no dia em que o rim falhar, mas quero aproveitar toda a liberdade que ele me dá. E é muita!