Escrever sob as abas deste enorme chapéu que é o “viver e vencer” a que fomos habituados nesta Nefrâmea que é de todos nós, é um enorme desafio. Se por um lado viver, nem sempre é fácil, o vencer a que todos aspiramos é mais difícil ainda, sobretudo quando enfrentamos no nosso dia a dia, a realidade de transportarmos em nossos corpos uma grilheta que nos prende a uma vida de permanente contacto com hospitais, centros de diálise, medicações mais ou menos agressivas e a observação e vigilância de uma alimentação e hábitos de vida rigorosos.
Mas afinal o que é a vida de todos nós? E o que é efetivamente vencer? Como está tão em voga, googlei o “viver e vencer” e obtive 1 130 000 resultados em páginas portuguesas, na sua grande maioria ligadas ao Movimento Viver e Vencer que se destina a apoiar mulheres mastectomizadas, vítimas de cancro da mama. Há ainda artigos em blogs sobre temáticas variadas que, no entanto, se mantêm fiéis à essência do registo anterior: “viver e vencer com fibrose quística”, “viver e vencer a colite ulcerosa”, ou outros de carácter mais religioso como “viver e vencer com fé em Deus” entre muitos outros.
Muitas são também as frases atribuídas a este ou aquele pensador que ilustram esta ideia: “O êxito da vida não se mede pelo caminho que você conquistou, mas sim, pelas dificuldades que superou pelo caminho” atribuída a Abraham Lincoln ou “um dos segredos do sucesso é a recusa em deixar que as adversidades temporárias nos derrotem” ou ainda “os grandes navegadores devem a sua reputação às grandes tempestades e tormentas” de autores desconhecidos mas que surgem em blogs e páginas das redes sociais como “sopros de incentivo” para quem delas necessita.
Olhando para trás, na nossa revista Nefrâmea, tiveram direito a aparecer na secção Viver e Vencer, uma série de Insuficientes Renais que já passaram pelas fases todas da doença, até ao transplante e venceram porque o fizeram com garra e empenho.
Enquanto profissional de saúde, mãe de uma criança insuficiente renal crónica desde os primeiros dias de vida, apetece-me contrariar um pouco esta ideia, ou antes acrescentá-la e expor-vos a todos o que me vai na alma expor-vos quando digo que para viver e vencer tudo o que conta é a vontade e a capacidade para ser feliz.
O Diogo aos 13 meses de vida tinha uma taxa de filtração glomerular de 25%, pesava 6,5 Kg, não falava, não andava e vomitava a todas as refeições. Nascera com uma malformação do aparelho genitourinário que determinou que vivesse os seus primeiros tempos de vida internado num hospital e que mantivesse até aos quase 4 anos com uma cistostomia, orifício que liga a bexiga ao exterior, por obstrução grave da uretra.
Aos 13 meses teve alta do hospital ao mesmo tempo que ganhava uma família. Era na altura previsível que viesse a necessitar de diálise a curto prazo e um posterior transplante (as crianças só podem ser transplantadas a partir de um determinado peso). Em casa, rapidamente deixou de vomitar, ganhou peso e adquiriu as competências das crianças da sua idade. O meu filho tem agora 8 anos, mantém-se em terapêutica conservadora, cumprindo rigorosamente uma dieta variada, hipoproteica e muito pobre em lácteos e derivados. Sabe tudo o que deve saber sobre os rins e a sua deficitária função renal. “Os rins são do tamanho de uma mão fechada, os meus são um bocadinho maiores, trabalham um bocadinho mal e servem para filtrar o sangue”. Sabe que deve comer apenas o equivalente à sua “palma da mão” de proteína e que se comer gelado não bebe leite nem come queijo. Gosta muito de chouriço, mas só pode comer uma rodelinha e muito de vez em quando. Também sabe que não deve abusar do sal e dos alimentos salgados. Só bebe água porque é, de todos os líquidos o que mais gosta e o que lhe faz melhor. Uma vez por outra pede-me para provar sumos ou chás, mas não lhes ganha gosto, continua a preferir água. Sabe quais são os seus medicamentos e quando os deve tomar.
A convivência com outras crianças com problemas idênticos tem sido facilitada pela APIR e isso é entendido por ele como uma mais-valia extraordinária. “Mãe, obrigado por pertenceres à APIR porque eu assim posso ter amigos insuficientes renais como eu”. Já na escola todo o seu trajeto tem sido o de uma criança feliz, sem problemas incomuns, porque ele não se sente coartado nem prejudicado pela doença na sua aventura de crescer.
Parece-me que incluir a realidade de ter uma doença crónica como uma condição de vida e não como uma fatalidade tem sido um fator diferenciador de grande importância para o Diogo.
Isto não é vencer?
“Sou muito feliz com a minha mana e a minha mãe, vocês também deviam ter uns pais assim. É assim a vida!”