Já lá vão seis anos, parece que foi ontem, que comecei a ser submetido à hemodiálise. Reconheço que não foi fácil aceitar este compromisso com a realidade. Independentemente da sua dimensão, as pequenas e grandes ocorrências que fazem o nosso quotidiano não passam, à medida que vai chegando o tempo de voltarmos ao pó de onde viemos. Muitos acreditam que aquele acontecimento menos bom foi um castigo de Deus, embora ninguém estivesse inteiramente certo de qual teria sido o seu pecado. Talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram. As minhas raízes são banhadas no caldo das dificuldades. Lutei imenso para que a sorte não fosse madrasta. Com muito esforço, a vida foi-me sorrindo e parecia um homem realizado. Construí uma família exemplar, tenho dois filhos maravilhosos e com um grau de solidariedade muito acima da média. Por iniciativa da minha mulher, ajudámos uma criança moçambicana a ser feliz na vida. Criámos a obrigação de lhe pagar os estudos e a alimentação durante vários anos.
Apesar de estarmos bem com a vida, todos os dias e por várias vezes, empurramos para cima de alguém aquilo que nos aflige. É normal e, até certo ponto, saudável. Significa tão-somente que estamos vivos e que reagimos ao que nos perturba. O sacudir das raivas e angústias é tão instintivo como possamos supor. Se queremos que nos tratem bem, que nos percebam, que calcem os nossos sapatos, devemos fazer o mesmo com os outros. Claro que não podemos ser sempre santos. Basta querer muito e apostar em ser cada dia mais positivo, construtivo e atento. Confesso que perante tanta adversidade em termos de saúde, cheguei a não acreditar no meu Deus. Questionava, bastas vezes, Senhor… porque mereci tal castigo? Perante o espelho da vida ganhava novas forças. Nasci num berço de verga, muito cedo comecei a trabalhar e a estudar. Felizmente os objetivos traçados foram alcançados e hoje, apesar de ter só quatro dias por semana, sou um homem feliz e realizado. Depois de passarmos pela lei das provações, nada melhor que estar de bem com a verdade dos factos.
Sempre assentei as minhas reservas em leituras que me levantassem o ânimo. Recordo um visionário Henri Lefebvre que nos transmitiu a sua visão do homem: o inacabamento faz o (…) interesse (do homem) e o seu encanto; o acabamento – o estado adulto, a maturidade, a história acabada, o “homem feito” – leva ao desastre. Quando enfrentamos a curva descendente, procuramos noutros exemplos mais arrepiantes, o lenitivo para enfrentarmos um caminho mais estreito (…). Numa dessas leituras, um homem feito dava-nos conta da sua angústia: “Embora no geral esteja em muito boa forma física, tenho tumores no fígado e apenas alguns meses de vida. Sou pai de três filhos pequenos e casado com a mulher dos meus sonhos. Embora pudesse facilmente cair num estado de autocomiseração, isso nunca seria bom, nem para mim nem para eles. Aproveito cada momento para estar com a família, ao mesmo tempo que levo a cabo todos os preparativos logísticos para que lhes seja mais fácil prosseguir sem mim. (…)”
Com exemplos destes, a nossa visão da vida passa a ser muito mais benigna. Acreditar não é uma capacidade que a uns seja dada enquanto a outros é negada. É tempo de trajarmos o espírito e o corpo à medida da ocupação do espaço que nos é permitido. Desta verdade podem estar certos: foi na fonte dos pobres que saciei a sede, lavei mãos e cara. Só através do trabalho foi possível espreitar o sol, saborear o dia e respeitar o silêncio da noite. Com esta ementa, sem quaisquer iguarias, aprendi a viver e, por acréscimo, fui obrigado a vencer.